Noites Submersas

Que procuras no tempo, quando te socorres da carne!Que procuras no tempo, que não se procure num olhar!Então socorres-te do tempo, para explicar a carne...

sábado, maio 07, 2005

O tempo passou...

O tempo passou,
E corri em busca do sol,
Mas perdi-me em vão na noite escura...

Procurei o sol,
Parti á sua procura numa manhã gélida de Inverno.
Atravessei as montanhas e desertos do meu pensamento,
Para morrer novamente de fome e de frio.

Ao morder de novo o anzol da ilusão,
Experimentei o sabor desta nova morte lenta,
Que me mantêm ancorada no porto da minha saudade,
Que tão persistentemente me amarra.

O meu corpo balança,
Ao sabor das ondas que me envolvem,
E experimento o sabor continuo do sal no meu corpo,
Que marina de igual forma ao sabor do tempo.

Vejo então o sol nascer a todas as manhãs,
Mas ao encontrar este sol, encontrei também a saudade.
Da saudade que se põe, nas noites escuras,
E ai permanece desde o crepúsculo até ao primeiro raio de sol.

Só lamento, não ter a capacidade de apreciar a lua,
Aproveitar a sua luz pouco reveladora,
E construir uma manhã taciturna,
Que me envolva da doce leveza.

terça-feira, maio 03, 2005

Autopsicografia

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.


Fernando Pessoa

01.04.1931
Publicado in Presença, n.º 36, Novembro de 1932.